A Sua Excelência o Presidente da Assembleia da República,
Senhor Doutor Augusto Santos Silva,

Os ora signatários trazem, ao abrigo do artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) e do artigo 17.º da Lei n.º 43/90, de 10 de agosto, na sua redação vigente, à Sua melhor atenção uma Petição que tem em vista a discussão de medidas concretas em matéria de Habitação em Portugal.

I. Enquadramento

Nos últimos anos, vários fenómenos sócio-económicos e políticos, designadamente em resultado do crescimento do turismo, do desenvolvimento de plataformas online de reserva de alojamento, da procura de vistos “gold”, do regime dos residentes não habituais, da proliferação do trabalho remoto, da crescente vinda de “nómadas digitais” para o território português e do forte investimento no setor imobiliário por fundos de investimento internacionais, resultaram numa evolução de crescimento exponencial dos preços de venda de imóveis, bem como do valor das rendas praticadas pelos senhorios.

De acordo com a informação disponibilizada pelo Eurostat, em Portugal, nos últimos 12 anos, os preços das casas subiram 70% e o valor das rendas subiu 25%, sendo a média Europeia um aumento de 45% e 17%, respetivamente (1).

Contudo, de acordo com os resultados dos Censos 2021, existem em Portugal 922.810 alojamentos familiares clássicos arrendados de residência habitual. Destes, cerca de 151.000 (16%) são objeto de um contrato de arrendamento celebrado antes de 1990, contratos estes protegidos por um mecanismo de controlo da subida das rendas. Ainda de acordo com a informação disponibilizada pelos Censos 2021, 79% dessas famílias abrangidas por contratos celebrados antes de 1990, pagam uma renda inferior a €200. Esta informação é relevante, pois demonstra que se desconsiderarmos estes contratos, o crescimento do valor das rendas em Portugal entre 2010 e à presente data seria muito superior a 25% (2).

Por sua vez, de acordo com a informação disponibilizada pelo Pordata, o ordenado médio, por mês, com horas extra, subsídios ou prémios, dos trabalhadores por conta de outrem era em 2010 de €1.075,3 e de €1.294,1 em 2021 (3). Esta variação representa um crescimento do ordenado médio dos trabalhadores por conta de outrem de 20% (muito aquém do aumento dos preços dos imóveis e do aumento do valor das rendas, desconsiderando as rendas resultantes de contratos de arrendamento celebrados antes de 1990).

Acrescendo a este cenário, é do conhecimento público que na cidade de Lisboa (uma das zonas de maior déficit imobiliário face à procura) existem 48.000 fogos desabitados (4). Tendo em consideração que Lisboa tem, de acordo com os Censos 2021, cerca de 545.796 residentes, os fogos desabitados representam quase 9% dessa população. Tenha-se ainda presente que a população em Lisboa diminuiu nos últimos 10 anos em cerca de 1,4% de acordo com os mesmos dados.

Noutro prisma, segundo a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (“CMVM”), “em novembro de 2022, o valor sob gestão dos fundos de investimento imobiliário (FII), dos fundos especiais de investimento imobiliário (FEII) e dos fundos de gestão de património imobiliário (FUNGEPI) atingiu 10.755,6 milhões de euros (...)” (5). Estes fundos não têm investimentos somente em território português. Não nos é possível recolher informação sobre todos os fundos estrangeiros com investimento em Portugal, sendo a informação disponibilizada pela CMVM um pequeno reflexo dos valores sob gestão dos fundos de investimento que muito têm contribuído para a especulação imobiliária em Portugal e em vários outros países do mundo.

É necessário ter em atenção que, desde janeiro de 2021, o Governo limitou a atribuição dos chamados vistos “gold” através de aquisição de imóveis em certas regiões do país (como Lisboa, Porto e Algarve). Contudo, alguns agentes, incluindo promotores imobiliários, encontraram uma forma de contornar esta limitação, constituindo fundos de investimentos cujas carteiras são compostas por imóveis. Tal permite que um investidor subscreva unidades de participação (UP) deste fundo, por um mínimo de 500 mil euros e obtenha um visto “gold”.

Segundo o Instituto Nacional de Estatística, o número de imóveis adquiridos por não residentes em 2019 foi de 19.520, ou seja 8,5% das novas transações (6).

Estando cientes que a evolução aqui descrita não é exclusiva da realidade portuguesa, não parece que as forças políticas tenham, infelizmente, envidado os devidos esforços, nem adotado as necessárias medidas que, face à conjuntura atual, permitam assegurar o direito à habitação tal como consagrado na CRP.

Perante o mesmo cenário de crescimento exponencial dos preços dos imóveis e das rendas, sem o devido acompanhamento do crescimento dos salários médios dos cidadãos, a Nova Zelândia e, mais recentemente, o Canadá adotaram medidas que impedem a aquisição de imóveis por estrangeiros ou não residentes (com algumas exceções). De acordo com o partido do primeiro-ministro canadiano Justin Trudeau: “O interesse nas casas canadianas está a atrair especuladores, empresas ricas e investidores estrangeiros (...) Isto está a levar a um problema real de habitação subutilizada e vazia, especulação desenfreada, preços a disparar. As casas são para pessoas, não para investidores.” (7).

Face ao exposto, os aqui peticionários entendem existir um verdadeiro problema estrutural nas políticas de habitação em Portugal. Não obstante a necessidade dos agentes políticos terem o dever de estudar e de implementar soluções estruturais, de forma a assegurar o direito à habitação, tal não impede que sejam adotadas, mesmo com carácter excecional e provisório, medidas que permitam que tal direito seja, desde já, assegurado (mesmo que tal implique um limitação ao direito de propriedade privada), como se explica adiante.

II. Petição - Propostas para apreciação por parte da Assembleia da República

Solicita-se à Assembleia da República que discuta as propostas abaixo, bem como outras, que possa enquadrar. Salienta-se que as propostas que se apresentam não correspondem a propostas fechadas. Além disso, fazendo os ora subscritores apelo a conceitos indeterminados, solicita-se, igualmente à Assembleia da República que, na eventualidade de as medidas poderem vir a merecer acolhimento, possam ser devidamente enquadradas e densificadas (por exemplo, através de definição de “zona de pressão imobiliária” ou outros conceitos relevantes). Algumas das medidas cuja discussão se solicita são as seguintes:

a) Criação de um imposto aplicável aos imóveis residenciais localizados em áreas de pressão imobiliária, em que a procura é manifestamente superior à oferta, que se encontrem devolutos (sem que os proprietários neles habitem, sem que se encontrem arrendados ou, de outra forma, legalmente ocupados – v.g., comodatos, alojamento local, etc.);

b) Proibição de venda de imóveis, em zonas de pressão imobiliária considerável, a pessoas ou entidades sem residência/domicílio fiscal em território português;

c) Proibição da conversão de imóveis residenciais em imóveis comerciais ou escritórios em áreas de pressão imobiliária, em que a procura é manifestamente superior à oferta;

d) Proibição de aquisição de imóveis residenciais por fundos de investimento imobiliário, fundos especiais de investimento imobiliário dos fundos de gestão de património imobiliário ou outros tipos de fundos ou entidades de investimento imobiliário em áreas de pressão imobiliária, em que a procura é manifestamente superior à oferta (exceto em casos de manifesta degradação do imóvel, não estando o mesmo apto para ser habitado à data da aquisição);

e) Desenvolvimento de novos mecanismo de controlo de contratos de arrendamento e sua fiscalização, estabelecendo elementos adicionais dissuasores que passem, por exemplo, pela aplicação de coimas e pela obrigação de comunicação de contratos de arrendamento por parte das agências imobiliárias, por contratos por si intermediados.

III. Da conformidade constitucional das propostas - Breve súmula

Na maior parte das situações, a criação legislativa exige ponderação valorativa de direitos. Não se desconhece que, não raras vezes, para permitir a concretização prática de alguns direitos, a compreensão dos outros pode admitir algum nível de restrição. Evidentemente, nunca se deve colocar em causa o núcleo essencial de um direito fundamental e eventuais restrições devem ser proporcionais. Tal resulta do próprio artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).

Ora, no caso em análise, é certo que as medidas propostas pretendem uma concretização prática do direito à habitação, ínsito no artigo 65.º da CRP. Não obstante, é necessário ter em conta a propriedade privada (previsto no artigo 62.º da CRP) e ainda princípios do Direito da União Europeia que determinam uma não discriminação entre cidadãos nacionais de um Estado Membro e cidadãos de outro Estado Membro.

Assim, estamos conscientes que as medidas propostas implicam que proprietários não possam usar ou a alienar a sua propriedade sem limites. Entendemos, todavia, que tal cumpre escrupulosamente aquela que é também uma função social da propriedade e que dever da Assembleia saber atender. Afinal, de que serve uma cidade senão para as pessoas? Abundam, infelizmente, fenómenos de concretização prática (mas ainda não declarada) de “cidades parques de diversões” que, embora reabilitadas, não são humanas, porque lhes escapa o sentido de Comunidade, já que estão vedadas, em termos práticos, a cidadãos (ou grupos de cidadãos) que se vêem impedidos de nela habitar.

Perante a restrição manifesta, evidente pelo que se escreveu supra, do direito à habitação, entende-se proporcionalmente imperativo prever uma concretização prática deste direito, ainda que implique a restrição de outros. O ponto está, como tem ficado subjacente, que os princípios constitucionais e europeus sejam observados.

O artigo 65.º da CRP consagra o direito à habitação como um direito fundamental. Consagra o n.º 1 deste artigo que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Por sua vez, de acordo com o n.º 2 do mesmo artigo “Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:

a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;

b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais;

c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada;

d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respetivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução.”

Uma vez que, na prática, em várias zonas deste país, o direito à habitação não é respeitado, pergunta-se se as medidas propostas supra serão proporcionais, atendendo ao direito à propriedade privada.

Antes de procurar oferecer uma resposta, esclareça-se que em momento algum se aniquila este direito ou o seu núcleo essencial é colocado em causa pelos ora signatários. Note-se que os direitos de propriedade privada e livre iniciativa não são direitos absolutos, nem têm “sequer os seus limites constitucionalmente garantidos, salvo no que respeita a um mínimo de conteúdo útil constitucionalmente relevante, que a lei não pode aniquilar” (8).

Vejamos:

O princípio da proporcionalidade subdivide-se em três subprincípios.

O subprincípio da idoneidade implica, segundo jurisprudência constitucional constante, que o meio restritivo escolhido pelo legislador não pode ser inadequado ou inepto para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir-se-ia um sacrifício desnecessário de valor constitucional. Ora, os meios propostos permitem dar concretização prática ao direito à habitação. Dir-se-á que tal não impactará no imediato. É certo, mas soluções mágicas não existem e é importante dar tempo e concretizar uma reforma que possa produzir resultados práticos.

O subprincípio da exigibilidade determina que o meio admitido não pode ser mais restritivo do que o indispensável para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário admitir-se-ia um sacrifício desnecessário de valor constitucional. Ora, como ficou patente acima, o direito à propriedade privada não fica posto em causa e apenas é restringido na medida da concretização do direito à habitação. Não se estão a propor medidas de nacionalizações forçadas ou outras. Por outro lado, convém salientar que, sendo certo que é previsível que, com tais medidas, o mercado imobiliário possa “arrefecer”, nem por isso se pode dizer que esse arrefecimento não seria constitucionalmente admissível, pois que o Estado não tem como função tutelar expectativas especulativas, mas tão-só as legítimas.

Por último, o princípio da proporcionalidade determina que os fins alcançados pela medida devem, tudo visto e ponderado, justificar o emprego do meio restritivo; o contrário seria admitir soluções legislativas que importem um sacrifício líquido de valor constitucional. Ora, também pelo exposto se percebe que o sacrifício que se vem promovendo não é um sacrifício desproporcionado. O direito mantém-se, mas permite concretizar uma função social da propriedade. Com efeito, a medida garante que as habitações possam, na medida do possível, ser utilizadas por uma Comunidade de pessoas a trabalhar e viver a Cidade.

Para finalizar, refira-se que se entende que as medidas ora propostas não encorajam nenhuma discriminação entre cidadãos nacionais de Estados Membros, dado que o critério apontado para acesso a habitação compreende a residência ou o domicílio fiscal em Portugal e não qualquer restrição a nível de nacionalidade (como seria o caso, por exemplo, de impedir o acesso a pessoas que não detivessem a nacionalidade portuguesa).

IV. Conclusão e Pedido

Pelo exposto, vêm os ora signatários solicitar a V. Exa. que as medidas ora apresentadas possam ser discutidas e concretizadas, eventualmente num maior leque de propostas que possam dar concretização a um direito à habitação que se reclama cada vez mais necessário e premente.

Agradecemos, desde já, a V. atenção, subscrevendo-nos com consideração,

Felipe Correia dos Santos
José Francisco Bigotte da Veiga
restantes signatários da petição

Referências:

(1) Disponível online: https://ec.europa.eu/eurostat/web/products-eurostat-news/-/ddn-20220708-1 [Última consulta: 23 de janeiro de 2023].
(2) Disponível online: https://tabulador.ine.pt/indicador/?id=0011501 [Última consulta: 23 de janeiro de 2023].
(3) Disponível online: https://www.pordata.pt/portugal/ganho+medio+mensal+dos+trabalhadores+por+conta+de+outrem+total+e+por+setor+de+atividade+economica-377 [Última consulta: 23 de janeiro de 2023].
(4) Veja-se artigo do Jornal Diário de Notícias, de 19 de abril de 2022 “48 mil casas sem habitantes em Lisboa”. Disponível online: https://www.dn.pt/local/48-mil-casas-sem-habitantes-em-lisboa-14782899.html [Última consulta: 23 de janeiro de 2023].
(5) Disponível online: https://www.cmvm.pt/pt/Estatisticas/EstatisticasPeriodicas/FundosDeInvestimentoImobiliario/Pages/novembro_2022.aspx?shpage=FundosDeInvestimentoImobiliario [Última consulta: 23 de janeiro de 2023].
(6) Disponível online: https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=415330840&DESTAQUESmodo=2&xlang=pt [Última consulta: 23 de janeiro de 2023].
(7) Veja-se o artigo do Jornal Público, de 3 de janeiro de 2023, “Canadá proíbe investidores estrangeiros de comprar casa”. Disponível online: https://www.publico.pt/2023/01/03/p3/noticia/canada-proibe-investidores-estrangeiros-comprar-casa-2033621 [Última consulta: 23 de janeiro de 2023].
(8) Cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1993, p. 327.

Petição 122/XV/1

Petição - Arquivada

Subscritor(es): José Francisco Bigotte da Veiga


Primeiro subscritor: 1

Assinaturas entregues: 0

Assinaturas online: 47

Total de assinaturas: 48