A escolha do sistema eleitoral é uma das decisões institucionais mais importantes para qualquer democracia. Em quase todos os casos, a escolha de um sistema eleitoral específico tem um efeito profundo na vida política futura do país, e os sistemas eleitorais, uma vez escolhidos, permanecem frequentemente bastante constantes à medida que os interesses políticos se solidificam e respondem aos incentivos por eles representados (International IDEA, 2005 ). É esse, claramente, o caso português.
Após o golpe militar de 25 de Abril de 1974, que pôs fim ao longo regime ditatorial, foi aprovada em 1974 uma lei eleitoral, que instituiu pela primeira vez em Portugal a eleição de representantes democráticos por sufrágio universal. Esta lei, promulgada em 15 de novembro de 1974 (Decreto-Lei n.º 621-C/1974), definiu o regime eleitoral da Assembleia Constituinte, eleita com a missão de redigir e aprovar a Constituição da República Portuguesa, adiante designada por CRP.
A CRP aprovada em 1976, adotou um sistema semipresidencialista, em que a Assembleia da República é eleita de quatro em quatro anos, por representação proporcional em cada círculo distrital, pelo método da maioria mais alta D'Hondt.
O Decreto-Lei 85-A/75, de 26 de fevereiro, fixava em 250 membros o parlamento português, 247 assentos distribuídos pelos círculos eleitorais distritais de Portugal Continental e dos arquipélagos da Madeira e dos Açores e mais três assentos para territórios ultramarinos e cidadãos residentes no exterior. Os círculos eleitorais correspondem aos distritos administrativos. Cada círculo elege um deputado a cada 25 mil eleitores e outro se o restante for superior a 12.500. Se um círculo tiver menos de 37.500 eleitores, elegerá apenas um deputado. Cada eleitor tem um único voto e as listas partidárias são fechadas e bloqueadas. Todos os partidos são incluídos no mesmo boletim de voto e o eleitor tem de colocar uma cruz na lista partidária da sua escolha. A lei não exige aos partidos um limiar de representação para ingressarem no parlamento. Embora os partidos pequenos sejam protegidos pelo facto de não existir um limiar eleitoral, a média distrital de baixa magnitude do sistema eleitoral português, acaba por favorecer os partidos maiores. Os assentos são convertidos em mandatos de acordo com a fórmula proporcional de D’Hondt. Os mandatos são atribuídos aos candidatos na ordem definida na votação. Não é permitida a inscrição de candidatos em mais de um círculo ou em mais de uma lista (Núñez, 2009 ).
Desde 1974, foram aprovadas várias alterações à lei, mas nenhuma delas implementou grandes alterações ao sistema de 1974: a maioria dessas alterações foram pequenas, como mudanças na dimensão da Assembleia da República. Com entrada em vigor da Constituição de 1976 ocorreram as primeiras alterações à lei eleitoral de 1974, promulgadas em 29 de janeiro de 1976. O número total de assentos da Assembleia da República aumentou de 250 para 263. Outra alteração teve como objeto os portugueses residentes no estrangeiro, que passaram a estar reunidos em dois círculos eleitorais: um para os residentes nos países europeus e outro para os residentes nos restantes países. A lei define que estes dois círculos elegem um deputado se tiverem menos de 37.500 eleitores e dois se excederem esse número. A Constituição de 1976 consagrou alguns dos seus principais elementos - a representação proporcional e a fórmula D'Hondt - tornando alterações apenas possíveis com a aprovação de dois terços dos deputados (Carvalho e Freire, 2023 ).
A reforma eleitoral de 1979 (Lei nº 14/79), promulgada a 16 de maio de 1979, volta a fixar o número de deputados à Assembleia da República em 250 membros. O número total de assentos para o território nacional (continente e ilhas) é de 246, os restantes quatro assentos pertencem aos dois círculos de cidadãos portugueses residentes no estrangeiro. Os três círculos dos Açores foram fundidos num só para as eleições de 1979 (Núñez, 2009).
Em 1989 ocorre uma nova revisão constitucional, promulgada a 8 de julho desse ano, que estabeleceu que a lei eleitoral poderia determinar a existência de um distrito nacional. Esta revisão constitucional alterou o estatuto da legislação eleitoral para “lei orgânica”, exigindo alterações ao artigo relativo aos distritos eleitorais de 2/3 dos deputados. No que diz respeito ao número de deputados, a revisão constitucional de 1989 alterou os limites de 250-240 para 235-230. Na sequência desta revisão constitucional procedeu-se a uma alteração à lei eleitoral que mudou o número de deputados de 250 para 230, fazendo a única pequena alteração no sistema eleitoral desde a aprovação da lei eleitoral em 1979 (Carvalho e Freire, 2023).
A revisão constitucional de 1997 foi promulgada em 20 de setembro de 1997. Nesta revisão constitucional previu-se a possibilidade de introdução de círculos uninominais, através de uma mudança na lei eleitoral. O número de deputados à Assembleia da República volta a ser mudado, estabelecendo-se agora no limiar mínimo de 180 e no limiar máximo de 230. Apesar desta alteração constitucional o número de deputados manteve-se em 230, tal como se encontrava desde as eleições de 1991, em consequência da revisão constitucional de 1989 e da alteração da lei eleitoral de 1990 (Carvalho e Freire, 2023).
Embora não tenham sido promulgadas grandes mudanças no sistema eleitoral português, os partidos políticos apresentaram várias propostas legislativas para alterar estas regras. Desde a consolidação da democracia, ocorreram 11 episódios de reforma eleitoral em que o reforço do status quo foi o resultado mais evidente. Apesar dos 11 episódios em que os partidos políticos tentaram reformar o sistema eleitoral, ocorreu apenas uma redução no número de deputados e duas alterações às regras que regem as mudanças no sistema eleitoral. O sistema eleitoral sofreu apenas uma pequena alteração em 1990 (redução do número de deputados de 250 para 230), além do aumento das barreiras legais necessárias à alteração do sistema eleitoral, que foram aprovadas pelo parlamento em 1989 e 1997 (Carvalho e Freire, 2023).
Apesar de se discutir a sua reforma quase desde que foi instituído (Cruz, 2017 ), foi a partir da revisão constitucional de 1997 que o debate sobre a reforma do sistema eleitoral vigente ganhou um novo impulso com a alteração do Art.149º da CRP, que no ponto 1 estabelece: «Os Deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, a qual pode determinar a existência de círculos plurinominais e uninominais, bem como a respetiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos.».
Os projetos de reforma do sistema eleitoral apresentados desde então apontam como motivo fundamental para as mudanças nas regras eleitorais a melhoria da qualidade da representação política, nomeadamente através da criação de condições institucionais mais favoráveis a um maior conhecimento e responsabilização dos eleitos pelos eleitores, capazes de eventualmente contribuírem para uma maior participação eleitoral e para uma maior confiança dos cidadãos nas instituições políticas, em geral, e na classe política, em particular. Vejam-se, nomeadamente, os projetos de lei do PSD de 1998 e 2007, bem como a proposta de lei do governo do PS de 1998 e do projeto de lei do PS de 2002. (Freire, Meirinho, Moreira, 2008 ).
Apesar de PS e PSD terem apresentado projetos de reforma da lei eleitoral semelhantes nos seus objetivos e convergentes em torno do modelo de representação proporcional personalizado, inspirados no modelo eleitoral da Alemanha, isto é, num sistema proporcional de membros mistos, as suas propostas divergiram, quer quanto ao figurino concreto, quer relativamente ao número de deputados.
No ano em que se comemoram os 50 anos do 25 de Abril, a reforma de um dos sistemas institucionais mais estruturantes da nossa democracia, constitui um imperativo cívico e ético.
O projeto de lei eleitoral que ora se apresenta, por via do instrumento de democracia participativa que a CRP consagra – Lei 17/2003 - Iniciativa Legislativa de Cidadãos – é o contributo da sociedade civil para retomar o processo legislativo em torno de uma matéria fundamental ao exercício e funcionamento da nossa democracia representativa, dotando os cidadãos de direitos políticos mais alargados, à semelhança do que sucede na generalidade dos países europeus, atualizando e modernizando uma lei orgânica que quase 50 anos depois da sua criação se manteve na sua essência inalterada e se tornou inexoravelmente obsoleta.
O projeto de lei que se segue, em linha com as propostas referidas anteriormente, visa o equilíbrio entre o princípio da proporcionalidade, que constitui um limite material da CRP, e o reforço da personalização dos mandatos e da responsabilização dos eleitos, sem prejuízo do pluralismo.
O projeto de lei que agora se apresenta tem como ponto de partida 230 deputados e três níveis de círculos - círculo nacional, círculos parciais e círculos uninominais de candidatura.
Esta proposta baseia-se num sistema eleitoral de múltiplos segmentos, mais concretamente de três segmentos: círculos uninominais de candidatura; círculos plurinominais de apuramento de base distrital e regional (no caso das regiões autónomas dos Açores e da Madeira); e um círculo nacional plurinominal de compensação. No segmento que abrange os círculos uninominais utiliza-se o método maioritário, de maioria relativa, para apuramento do vencedor.
No segmento dos círculos plurinominais parciais, de base distrital e regional, utiliza-se o método proporcional, aplicando-se o método de D’Hondt, para o apuramento do número de mandatos que cabem a cada partido, com o objetivo de compensar parcialmente as distorções à proporcionalidade geradas nos círculos uninominais.
No segmento do círculo plurinominal nacional de compensação são integralmente compensadas as distorções à proporcionalidade remanescentes à compensação parcial dos círculos distritais e regionais, garantindo, assim, designadamente, a representatividade dos pequenos partidos.
Cada eleitor dispõe de dois votos: um na componente uninominal e outro na componente distrital/regional e nacional, no caso dos círculos do território nacional; e exclusivamente na componente nacional, no caso dos círculos no estrageiro.
Esta proposta garante igualdade de direitos a todos os cidadãos eleitores portugueses, quer os residentes em Portugal quer no estrangeiro, tanto no que respeita à possibilidade de exercer o voto nominal no respetivo círculo uninominal, quanto à possibilidade de exercer o voto duplo, garantindo, assim, a todos a participação na componente de representação plurinominal parcial.
No que respeita aos círculos uninominais em território nacional, este projeto prevê que o seu número será igual a metade mais um dos mandatos do círculo parcial, arredondando por defeito. O limite de variação do número de eleitores é de 30%, garantindo-se, no caso dos círculos uninominais de Portugal continental que não existirão situações em que parte da área de um município é agregada a outro ou parte de outro, garantindo-se a integridade e a contiguidade dos territórios agregados. No caso das regiões autónomas da Madeira e dos Açores, atendendo às características insulares destes territórios, garantir-se-á a integridade dos municípios e sempre que possível a contiguidade territorial.
Nos círculos no estrangeiro as regras de territorialidade acima descritas não se aplicam, por razões óbvias. Optou-se, neste último caso, por criar cinco círculos uninominais, aumentando em um deputado o número de deputados a eleger na Europa, que passa de dois para três deputados e mantendo o número de deputados – dois - a eleger fora da Europa. Os círculos uninominais propostos procuram estabelecer uma correlação entre o número de deputados e o número de eleitores recenseados nesses territórios. Os países da Europa correspondem a aproximadamente 60% dos eleitores recenseados no estrangeiro, enquanto os países fora da Europa correspondem a aproximadamente 40%.
A Europa passa a ter três círculos uninominais:
- França (corresponde a aproximadamente 40% dos eleitores recenseados no espaço europeu);
- Europa Central – que integra Alemanha, Bélgica, Luxemburgo, Países Baixos e Suíça (corresponde a aproximadamente 30% dos eleitores recenseados no espaço europeu);
Resto da Europa - que integra os demais países da Europa (corresponde a aproximadamente 30% dos eleitores recenseados no espaço europeu).
Fora da Europa passam a existir dois círculos uninominais:
- Lusofonia – que integra os países de Língua Oficial Portuguesa: Angola, Brasil, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor (corresponde a aproximadamente 50% dos eleitores recenseados fora do espaço europeu).
- Resto do Mundo – que integra os países não lusófonos e extraeuropeus (corresponde a aproximadamente 50% dos eleitores recenseados fora do espaço europeu).
No que respeita ao terceiro segmento - o círculo nacional - fixa-se em 35 deputados. O que tem as seguintes vantagens: permite, por um lado, contornar os efeitos do voto útil nos círculos uninominais e, por outro, compensar os casos de mandatos supranumerários ao nível dos círculos parciais.
190 deputados serão atribuídos aos círculos do primeiro e segundo segmentos, respetivamente, uninominais e plurinominais de base distrital/regional, de acordo com o princípio, acima referido, de que o número de círculos uninominais será igual a metade mais um dos mandatos do círculo parcial, arredondando por defeito.
Optou-se por não apresentar conjuntamente com o projeto o mapa dos círculos uninominais no território nacional – uma vez que este dependerá da data do recenseamento que se escolher como referência, devendo ser elaborado apenas depois de estabilizados, na discussão na especialidade, os dados normativos relevantes.
Este projeto de lei contém elementos constantes da base matricial de propostas de lei anteriores e elementos inovadores resultantes de um longo debate que contou com importantes contributos da academia e de organizações da sociedade civil.
Assim, ao abrigo das disposições constitucionais e legais aplicáveis, designadamente a Lei 17/2003, de 4 de junho, Iniciativa Legislativa de Cidadãos, os cidadãos eleitores portugueses, abaixo-assinados, apresentam o seguinte projeto de lei.
Iniciativa legislativa - A aguardar assinaturas online
Comissão representativa: Daniel Oleirinha Adrião Jorge Máximo MARIA ISABEL SILVERIO BARRADAS MAGUIERE Pedro Cotrim Castro e Silva Pedro Miguel Dias Rodrigues Pereira Tiago Jorge de Assis Caldeira Cruz Corais
Comissão representativa: 6
Assinaturas entregues: 0
Assinaturas online: 169
Total de assinaturas: 175
Anexos
Texto do Projeto de Lei (sob a forma de artigos)