Ex.mo Sr. Presidente da Assembleia da República

Entre 1807 e 1810, forças militares francesas responsáveis por três sucessivas invasões de Portugal levaram a cabo milhares de ações de confisco, saque e destruição de património cultural português pertencente quer à Coroa, quer a particulares, quer a autoridades civis e eclesiásticas.

Avulta nestes saques a demolição à marretada de túmulos medievais, obras de arte de valor monumental único, no intuito de se despojar os cadáveres neles jazentes de quaisquer joias com as quais pudessem ter sido enterrados. Ainda hoje, de norte a sul do país, centenas de monumentos fúnebres apresentam as marcas desta destruição, constituindo exemplo paradigmático desta selvajaria os túmulos góticos dos monarcas D. Pedro I e D. Inês do mosteiro de Alcobaça.

Foram igualmente roubados milhares de artefatos religiosos em prata e ouro, também muitos deles únicos no mundo, como bem se depreende pelas listagens exaustivas ainda hoje existentes no Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros na Torre do Tombo e onde se elencam os objectos confiscados.

Foram, finalmente, saqueadas as coleções naturais e as bibliotecas e arquivos de vários palácios reais, com especial incidência sobre as do Palácio da Ajuda, numa ação levada a cabo pelo cientista francês Geoffroy Saint-Hilaire, sob ordens do ministro do Interior de França. Centenas, senão milhares de manuscritos da época dos Descobrimentos, cartografia portuguesa inédita, livros e relatórios científicos que descreviam um mundo então ainda desconhecido para os Franceses, pistas para as riquezas de países como o Vietname ou o Brasil, fazem hoje parte das coleções do Museu Nacional de História Natural ou da Biblioteca Nacional de França.

Se até agora a França se tem mostrado renitente em identificar e devolver esse património, a recente encomenda por parte do Presidente francês de um relatório que indica o caminho a seguir na restituição de bens patrimoniais saqueados durante o período colonial mostra que o mundo está a mudar e que, à barbárie de ontem, há que contrapor a descolonização da história.

Assim, inspirando-nos no relatório Savoy-Sarr e invocando o espirito da Lei n.º 30/2016 - que institui o regime da restituição de bens culturais saídos ilicitamente do território de um Estado membro da União Europeia - e a Diretiva Europeia 2014/60/UE sobre o mesmo assunto, solicitamos de V. Exas que envidem todos os vossos esforços no sentido de:

1) se criar um grupo de trabalho nacional que identifique e liste os documentos históricos e os artefactos de origem cultural portuguesa ilegalmente detidos em território francês, provenientes dos saques ocorridos durante a chamada Guerra Peninsular, da qual Portugal emergiu como uma das potências vitoriosas e a França como a grande derrotada;

2) com base nas listagens elaboradas, estabelecer, pelos canais apropriados, contactos bilaterais com o Estado francês no sentido de serem devolvidos ao Estado português os bens culturais assim identificados.

As injustificadas ações bélicas francesas de há mais de dois séculos causaram catastróficas perdas - em vidas humanas, no património cultural português e na memória coletiva do país. Se atualmente nada poderá remediar algumas dessas perdas - como o incêndio deliberado de cartórios históricos como os de Penamacor e Santarém - a devolução a Portugal de todos os artefactos e documentos saqueados do nosso país aquando das invasões napoleónicas é da mais elementar justiça e um passo em frente para a construção de uma Europa mais coesa e pacífica.


Para saber mais:

Carla Barroso, Leonor Borges & Margarida Cabral (2020) “Restituição de Bens Culturais: Enquadramento Internacional”, Coleção Temas. Lisboa: Assembleia da República, Divisão de Informação Legislativa Parlamentar.

J. Bettencourt Ferreira (1923) “A missão de Geoffroy Saint-Hilaire em Espanha e Portugal, durante a Invasão Francesa, em 1808: Documentos para a História do Museu Nacional de Lisboa”, Boletim da Segunda Classe da Academia das Ciências de Lisboa, vol. XVII, pp. 208–227.

Luís R. Guerreiro (2001) “Manuscritos do Fonds Portugais da Biblioteca Nacional de França” Lisboa : Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses - Centro de Estudos Damião de Góis.

Piotr Daszkiewicz (2002) “A few Portuguese letters and manuscripts brought to Paris by Etienne Geoffroy Saint-Hilaire, now in the manuscript collection of the library of Musée National d’Histoire Naturelle”. Lisboa: Museu Bocage.

Petição 288/XIV/2

Petição - Arquivada

Subscritor(es): Alexandre de Paiva Monteiro


Primeiro subscritor: 1

Assinaturas entregues: 1

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Informação adicional

  • 2021-10-08: Nomeado o relator OLGA SILVESTRE